Astrid Cabral

SORVETERIA


Dia de verão qualquer
no labirinto dos shoppings
os homens tomam sorvete.
Alguns engolem vorazes
receosos de que o mormaço
lhes arrebate a porção.
Outros, lentos, não acertam
com o creme fugaz o ritmo
da fome. Morrem na fonte.
Poucos os que se deleitam
fruindo o açúcar e a neve
sem dúvidas sobre a dádiva.
Existe quem torça a cara
às iguarias servidas
imaginando outras raras.
E quem enfeite o bocado
de caldas extras, perfume
de licores, nozes finas.
Todos um dia qualquer
terão suas taças vazias
lábios imóveis, mãos frias.

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MÃOS


No deserto da insônia
a mão, triste, me acena
nua de anéis e luvas.
Dedos gesto de adeus
anunciam o abandono
da matéria efêmera.
Dos campos do sono
a mesma mão me chama
cintilante de estrelas.
Tento alçar-me da cama
no encalço do convite
mas a carne me amarra.
E enquanto o corpo dura
fico entre a dor da perda
e o desejo do encontro.

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MORTE POR ÁGUA


Da primeira vez
ninguém se deu conta do perigo.
Até a mãe sorriu pensando
como é dramática essa filha
e reviu-a sob um pé de acácias
desmaiada fingindo-se de morta.
Sorte que aos gritos de socorro
um anjo voou de entre as ramas
arrebatando-a ao umbigo do rio.
Da segunda vez
a muralha do mar desmoronou-se
mortalha sobre o vulto de sereia.
Mas rolava um tempo de amor cortês
e gestos de bravura. Sem demora
dois cavalheiros surgiram da areia
e cavalgando o dorso das ondas
venceram o monstro marinho
em vassalagem à jovem dama.
Da terceira e última vez
no peito sacudido por soluços
os olhos desataram cachoeiras.
Era a alma que morria embarcando
no esquife do filho rumo ao barro.
Dessa vez não escapou ao naufrágio.
Quando o corpo do fundo do poço
boiou, era cadáver ambulante
a alma decepada ao fio da dor.

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Modo de Amar


Amor com tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpago e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.

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Desastres de Amor


Mulher bule de louça
deixa-se pegar pela alça
e verte suor e sangue
em quantia exata.
Dei com o nariz
na porta do teu coração.
Foi sangria desatada
e a porta do pronto-socorro
também encontrei fechada.

Eu disse a meu coração:
Sossega pois tudo passa.
O nada não é perdição
mas estado de graça.

Desde que o mundo é mundo
a sina:
o amor, centelha
que faz o incêndio
e a cinza.

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